Waldemar Bastos - "Deus é tudo para mim"

 Deus é tudo para mim

O aDEUS de Waldemar Bastos

 

Nos muitos ou poucos anos nas ruelas e avenidas desta vida que se quer vivida sempre existem aqueles, da porta estreita, que sempre buscam um sentido maior para o Sofrimento. 

“Pra quê tanta dor?

Pra quê tanto ódio?

Se somos irmãos

“Olha aquela mamã
Já não tem lágrimas
Já não tem lamento”

 

A partir de uma certa altura de erros, falhanços e sucessos algo nos cutuca os vazios para fora. Ou para dentro. Ou para fora e para dentro. Mas algo nos cutuca enquanto o vazio nos esvazia de certezas e egos. É um vazio que atormenta e dilacera.

“Olha o tormento,

Olha o tormento

Que vem cá de dentro” Sofrimento

“E o tempo passou e a velha chica, só mais velha ficou
Ela somente fez uma kubata com teto de zinco, com teto de zinco” Velha Xica

Para alguns, rezam os consultórios da psique, este tormento é a razão dos vícios; para outros é apenas o intensificar da busca de um propósito; para poucos, os da "porta estreita", é o início da caminhada para o mundo invisível de Deus. Feita a escolha tudo se desenrola como coincidências. Milagres e idas ao fundo do poço onde se descobre que não há fundo. Ele pode sempre ser mais fundo rumo ao infinito que quase rasa o magma dos infernos. E o inferno, muitas vezes, são os outros como dizia Sartre. E algumas vezes esses outros somos nós.

“Por onde passas, suja
Teu olhar é mau-olhado
Vê se dei teu coração

Tanta malícia, tanto veneno” Kuribota

 E é nessas andanças pelo fundo do poço entre lamaçais de malícia, traições e mesquinhez sórdida que o mistério das coincidências mais se adensa. Dizia-me um amigo que lera algures e num outrora que o “acaso é, talvez, o pseudónimo que Deus usa quando não quer assinar as suas obras”. E o Waldemar Bastos sempre dizia:

-«Coincidência» num sussurro quase cantado….E depois ria-se: «Não há coincidências. Foi Deus.»

Longe estava de pensar que nos revelava o pseudónimo de Deus. Afinal Deus porventura o mais amado e odiado sentiu necessidade de se manter no anonimato? Coincidência é o seu pseudónimo! Entre lamentos de quem não quer deixar partir um amigo: sorri. sorri baixinho. sorri com lágrimas… pois num dia de luto, num mero acaso, descobri o pseudónimo de Deus.

“Mas a velha chica embrulhada nos pensamentos

Ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento

Waldemar Bastos embrulhado num cântico dos cantos apresenta os mais simples de “calção roto” de Angola ao mundo. E no seu percurso de compositor internacional leva nas suas composições as vivências dos mais desfavorecidos e menos instruídos aos palcos reservados à ópera. Esse é o grande paradoxo e a esquebra da sua obra! Os pés descalços de Angola, as suas línguas e os seus falares na voz de WB dignificaram os palácios da elite internacional.

“Teresa ana, minha senhola
Olha a laranja, minha senhola

Olha a tangerinaeee, minha senhola

Têm maboque docinha pras criancinhas

Com vitamina, com vitamina

Há esquebra conforme comprar


O resultado da sua arte espelha-se nos laços "afro-luso-atlânticos" que criou através da sua música. Mas apesar das dificuldades de ser “um forasteiro” na sua terra nunca perdeu a fé. Mesmo quando nada fazia sentido. Como esta partida prematura. Que só pode ser uma PARTIDA. Uma ironia típica de um escritor. Típica de um artista. Típica da arte. O herói morre depois de ter conquistado um exército de inimigos entre lutas e sofrimentos por valores e princípios indecifráveis para muitos. Morre no deserto, embora no oásis, de ser amado por uma multidão de muitos. Um herói morre?! Um herói não morre!  A sua arte é eterna “agora e outrora”.

 

“Quem como eu
Já subiu e desceu
O morro do kussava

Agora e outrora
Com certeza já viu

E a revolta cresce contra o autor e realizador desse filme impiedoso onde o herói morre sem o tão desejado concerto para todos angolanos sem excepção na Muxima - Nossa Senhora do Coração dos Angolanos - nas margens do rio Kwanza. Mas afinal que sentido faz morrer no deserto aquele que sempre foi um filho incansável? Que sentido faz? E é aí que os holofotes e os olhares saiem da tela do mundo e viram-se para cima. Lá para cima. Buscando o autor da vida. O autor que prefere ser reconhecido na forma de uma COINCIDÊNCIA. E é quando de uma tela celestial, quase para lá da fronteira do visível, num tempo sempre presente, Waldemar Bastos nos consola sorrindo com um terço cerrado no punho: “Deus é tudo para mim”. As respostas, que agora procuramos para esta PARTIDA prematura, há muito já tinham sido dadas. Lá! Bem no início deste filme biográfico. Mas estávamos todos distraídos com o enredo, as luzes, a acção, a dança e não vimos que há muito que Waldemar Bastos já tinha tudo: Deus.

“Amanhã será outro dia
De alegria e de beleza
O mundo
                                                  O mundo é tão bonito”      Morro de Kussava

 E apesar de não termos respostas terrenas e lógicas para deliberações divinas fica o pensamento de Bach: “Nada acontece por acaso. Não existe a sorte. Há um significado por detrás de cada pequeno acto. Talvez não possa ser visto com clareza imediatamente, mas sê-lo-á antes que se passe muito tempo.” 


Lueji Dharma

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